Habla Conmigo | Fala Comigo | Talk to Me
Educador, linguista, escritor, estudante de antropologia e mentor de jovens
14 de abril de 2023
Seu Moreira é um sanfoneiro dos bons, requisitado pelos batataenses que não arredam o pé dos bailões tocados por ele. Pintado de jenipapo, o preto se deixa ver quando é lua cheia. Ou quando tem bailão. Veio, assim como eu, de outras bandas: ele das Gerais, eu, cruzei o Atlântico. Diz ele que veio fugido de português preguiçoso. A lei de soltura acabou faz 30 anos e o velho ainda o queria cativo, para não ter ele mesmo que botar a mão na massa. Problema é que o preto sanfoneiro caiu tanto no gosto das liberdades, que noitariamente esquece que deve ajudar na educação das crias, e fica por aí, perdido em noitadas de sanfona, cachaça e suor. Saindo de uma dessas noitadas, seu José Moreira, que calha de ser também meu esposo, partiu, ainda exalando água de alambique, a registrar a número cinco. Ela, a recém-nascida, chegou de pele clara, nariz largo e cocuruto coberto por caracóis. Uma graça a criatura, tem que ver. Não tem o que por nem o que tirar entre ela e as outras quatro. Tudo cara de uma, focinho da outra. Mas ela, a número cinco, ainda não tinha nome, diferente das anteriores. Problema que meu esposo de prontidão se deu a resolver, sem nem me consultar. Logo eu, danada de boa pra nomear quem nasce sem ser nem daqui nem de lá.
Antes de seguir com a história, quero deixar claro que quem me contou, para eu poder então recontar, foi José mesmo. Constância, vizinha nossa que faz a faxina no cartório, estava lá quando chegou Moreira, registrar a número cinco. Quem tem comadre, tem fontes mais confiáveis. Constância é boa de fuxico e não deixa eu ficar sem saber o que José não detalha.
Já somavam quatro filhas, Cecília, Geni, Naide e Neide, quando São Paulo comemorava seu aniversário com a fundação do Mercado Municipal de São Paulo, dei à luz a número cinco, que veio sem nome, mas com endereço e carteira registrada de auxiliar de trabalho na roça. Nesse dia, de um janeiro tropical, tempo gostoso e bom de arar das terras brasilianas, José chamou a parteira dona Arlete da Conceição para a colheita de nossa germinação conjunta. Assim que constatou que número cinco possuía o mesmo focinho das outras quatro. saiu de festa como se soubesse não ter tido enganação. Era o pai mesmo. Raiou o dia, São Paulo trouxe as frutas do Brasil todo para o Mercadão e esperava com ansiedade o madurar de outra semente no interior. Logo que abriu o cartório, a única repartição pública pontual do povoado, José sentado em frente ao seu portão descomunal, esperando a chegada do advogado. Se eu soubesse de antemão que meu marido chegaria ao cartório trôpego, zonzo e sem a menor ideia de nome para a cria, teria eu lhe puxado a orelha e protestado, Não se vá sem eu, que sem eu tu já sabe que não sabe ir. Assim mesmo ele foi, me deixando com a filharada para trazer mais tarde o nome da caçula, uma penca de banana, um barril de aguardente e uma corvina de cinco quilos pro almoço nomeação. Sabia ele bem me agradar. Sem eu saber das surpresas, seguia com a rotina acordando as mais velhas, Cecília, vá buscar a lenha. Geni, vá ordenhar a vaca. Naide e Maria, ainda muito pequenas, eu deixava pestanejar e bocejar mais um bocado. A número cinco mal abrira os olhos e não chorava. Sorria e amava ser uma Girotto Moreira mais. Minhas fias todas serão matriarcas de mesas compridas e muitas crias, pensei com orgulho.
_Comadre, olha que eu tava ali, varrendo o chão quando entrou José, logo que se sentou o advogado doutor Francisco de Paula Becker Schmidt, que já meio sem paciência pela manhã, vou ser sincera, lhe perguntou:
_Qual o nome da criança? o tom do senhor era tão áspero e inexpressivo, que parecia incomodado de ter que trabalhar em plena terça-feira.
José com seu jeito faceiro de quem sabe como e onde pisar, mas sem se deixar ser pisado, respondeu:
_É Neide, seu doutor.
Com seu paletó importado, no sol corrosivo do interior paulista, o homem alvo retirou sua caneta decorada de detalhes dourados na base, se pôs a escrever, N E I D E G I R O T … parece ter tido um lapso de memória, se levantou com a elegância de um cisne e se pôs a buscar os registros de 31 em uma grande pasta marrom cheirando a arbítrio. Sendo o único funcionário do cartório, fora ele mesmo quem registrara os neonatos daquele ano e de todos os anos antecedentes e subsequentes.
_Seu José, o senhor já tem uma filha de nome Neide Girotto Moreira.
Ainda que desconfiado, José naturalmente não se lembraria de ter escolhido tal nome, uma vez que era sempre eu, Angela Girotto, que decidia tais assuntos de importância decisiva. Parou um minuto, coçou a cuca e se esforçando a buscar outro nome, soltou aflito e contrariado mais uma tentativa:
_É Naide, então.
O advogado de nome e sobrenomes impronunciáveis, voltou a escrever com sua caneta sofisticada na pasta de 33, N A I D E G I R O T... e deteve-se uma vez mais. Tapou a caneta e metodicamente a posicionou ao lado da pasta. Com a mão levemente trêmula, retirou os óculos e levantou a cabeça, olhando diretamente ao novamente pai.
_O senhor é esquecido mesmo ou lé-lé, seu José? A cachaça lhe desmiolou? Naide também está registrada na família Girotto Moreira.
A insolência daquela figura ríspida e inatacável levava José Moreira, preto retinto, belo, forte e artístico a um lampejo de autoimportância, desejoso de dar um estrondoso peteleco naquela cara amassada de quem muito come e nada gosta. O desejo era intenso, é verdade, a memória da vantagem que levava tal figura naquelas terras, contudo, era também força imponente. José se conteve à exclamação salientada:
_É Naide, é Naide mesmo, seu doutor. Bote assim como eu disse. Ter duas filhas com o mesmo nome pode ser de grande serventia. Angela chama uma, vem as duas de mãos dadas, saltitantes e brincantes no percurso. E se o senhor não gostou, passar bem. Problema dos outros é dos outros, pois trate de registrar o nome da nossa filha. Ela é de Angela e minha, não é? Que eu saiba não é sua.
Ávido por impor sua autoridade conquistada no suor de nome registrado em diploma de papel fino, o escriba voltou a olhar fixamente a José, ainda que agora suas sobrancelhas franzidas agora demonstravam um ar malicioso e malandro, como tendo uma ideia para atender aos pedidos de seu estômago que coaxava como um sapo-cururu. Levou as íris afogadas ao caderno de registros notando que não havia agendado nenhum compromisso naquele dia. Logo lhe veio o pensamento da concretização aperaltada da solução. Vou dar o que ele quer. Ao meu estômago e ao preto José.
Sabendo que nome igual não pode ter, ainda mais em povoado pequeno e próspero, doutor Becker Schmidt, era ele também um nascido na esperteza de dar jeitinho. Perguntou amigavelmente ao sanfoneiro:
_Entendo seu José. Então o senhor deseja que sua filha se chame... é ... é Naide. Certo? É Naide mesmo?
_Sim, doutor. É isso mesmo. É Naide!
Levando a caneta até a folha em branco, doutor Becker Schmidt sentenciou o florescer de novo nome: E N A I D E G I R O T T O D E C A M P O S. Despediu-se do sanfoneiro saindo apressado para a padaria do outro lado da vereda. Os aromas do café e do pão de queijo transformavam o coaxar da pança do escriba em coral de brejo.
O sanfoneiro, foi feliz da vida pra casa, contar a novidade e levar o banquete para a família. Número cinco agora era Enaide. Inigualável e fecundante desde o batismo. Nasceu em terra de jeitinho, cresceu em roça fértil e espalhou sementes por onde passou. Brasileira nata. Misturada, embaralhada, sementeira.