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Educador, linguista, escritor, estudante de antropologia e mentor de jovens
7 de dezembro de 2022
Ronaldinho com seu cabelo icônico, copiado por 99% dos moleques brasileiros. Ronaldinho Gaúcho enchendo o Brasil de emoção com a sua ginga, deixando evidente para o mundo todo que no Rio Grande do Sul tem gente preta. Roberto Carlos, aquele lateral que quando a câmera o filmava cobrando faltas, o mundo todo pirava com suas coxas esculturais. E o Cafu? Aquele senhor que como um bom vinho, quanto mais o tempo passava, mais autoridade possuía em sua função de capitão. Para quem nasceu nos anos 90, como eu, ou em décadas anteriores, certamente se deu conta de que eu estou falando sobre a seleção brasileira de 2002.
Neste ano eu tinha apenas 11 anos, mas minhas lembranças desta época são tão vivas quanto um abacateiro sob o sol. Lembro de cores, sabores, odores e sensações da minha pré-adolescência com muita nitidez. Entre elas, as mais vívidas são as relacionadas com as copas do mundo, especialmente as de 2002 e 2006. A casa de meus avós, dona Enaide e dom Alcides, fora construída por eles mesmos, em uma rua de bairro residencial muito tranquila, onde carros eram raramente vistos. Dona Enaide, a matriarca da minha família, dizia: "_Meu filho, quando a gente mudou pra lá, nem Jesus tinha passado por ali." Imagina isso, uma rua parada no tempo. Enquanto a cidade se verticalizava, a rua Agudos continuava silenciosa e com casinhas térreas, logo, esta rua das infâncias minha e dos meus primos, era um lugar propício para festas, brincadeiras, churrascos e claro, ver os jogos da Copa com a família e todos os vizinhos.
A família toda se dedicava a fazer almoços colossais, pintar as ruas de verde e amarelo e decorá-la com bandeirinhas e balões. Até hoje eu não consigo entender como meus avós, uma empregada doméstica e um trabalhador de fábrica de sapatos, conseguiram prover festas com comidas e bebidas para mais de 50 pessoas. Minha geração, às vezes, não consegue nem se dar o luxo de ir à praia uma vez por ano. Hoje vivendo na Colômbia, eu sinto que o termo 'realismo mágico' também se aplica muito bem ao meu país. Os velhinhos brasileiros também têm poderes sobrenaturais: eles são capazes de evidenciar a real riqueza de nossas terras.
Hoje, com o orgulho que nossos meninos nos dão na Copa do Mundo no Catar com seu jogo bonito, eu me permiti lembranças cheias de boniteza dessa época. Agora, uma forte vontade de escrever sobre elas me levam a este texto sobre o fusquinha do tio Maurinho.
Este talvez seja o carro mais emblemático do Brasil, e também de muitos países ao redor do mundo. Com um design muito distinto do que vinha sendo feito no final dos anos 30, início da sua fabricação. No Brasil o carro chegaria apenas em 1950, sob importação. Porém, logo passa a ser produzido em solos nacionais. Um dado curioso sobre o automóvel alemão é que ele fora desenvolvido na Alemanha nazista, baixo o regime de Adolf Hitler. A contradição é que um regime fortemente segregacionista, foi capaz de produzir o Fusca como o carro do povo, realmente possibilitando que muitas pessoas tivessem acesso ao veículo particular a preços populares. É neste ponto de inflexão da lógica de locomoção, que muitas famílias começaram a ter histórias para contar, pois o Fusquinha se tornava mais e mais presente nos lares brasileiros.
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Maurinho, meu tio materno, foi um destes consumidores. Até hoje o motorista de ônibus conserva alguns destes carros velhos em sua garagem, em meio a muitas outras peças de carros desmontados untados em muita graxa. Era com ele que meus primos e eu viajávamos para o litoral paulista em seu fusquinha azul, para ter um fim de semana de família, folia e farofa. Não importa se éramos 4 pessoas, um número confortável de pessoas no carro, ou 5, que já se mostrava um pouco apertadinho, ou se éramos 6, 7 ou 10. Sempre cabia mais alguém para 'descer a Serra'
Pode-se dizer que a parentada Rodrigues era um microcosmo brasileiro. Gente de toda cor, com credos de toda fé, tocando guitarras de rock 'n' roll e batuques de candomblé, compunham este agrupamento. Naturalmente, ao pisar em Santos, Praia Grande ou Guarujá, éramos notados há quilômetros de distância. Uma grande balbúrdia sempre se armava nas areias escuras destas praias populares, entre frangos e batatas fritas, refrigerante, picolés e qualquer outro alimento com quilos de óleo de soja e açúcar refinado. Se eu tivesse uma bola de cristal e pudesse olhar para este Jeffer do passado, lhe diria para maneirar no consumo dessas iguarias, pois o preço 20 anos depois sempre é caro. Contudo, talvez um preço ainda maior, seria não ter essas lembranças de dias felizes.
Quem me conhece sabe que sou bastante realista, cético e pragmático. Ao mesmo tempo, também muito apaixonado, sonhador e filosófico. Uma combinação presente no meu mapa astral, para quem curte essas paradas. Assim que, agora que já ando na casa dos 30, minha saúde física se apresenta bastante forte e minha saúde mental agradece essas memórias afetivas de família, percebo que eu também, entre muitas outras coisas, herdei de meus avós a sua capacidade de viver o realismo mágico. Vó Naide e vô Alcides são meus verdadeiros mestres da arte de viver.
A família Rodrigues está longe de ser uma família margarina, temos intrigas épicas e muitas rupturas entre os reinos. Porém, quando me lembro destes finais de semana, onde as polarizações eram inexistentes e o único problema eram os de traições entre casais e derrotas em partidos de futebol, me permito romantizá-los e me sentir saudoso desses tempos que, prevejo, não voltarão a acontecer.