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Colagem feita com o quadro Nossa Senhora Aparecida de Alexsandro Almeida
Educador, linguista, escritor, estudante de antropologia e mentor de jovens
12 de outubro
Há quem não entenda a força que as imagens das virgens tem ao redor do mundo. Digo isso com pesar, por ter sido eu mesmo um destes, que por tanto tempo, descreditou estes simbolismos.
As virgens, contudo, são elas grandes representes do povo de um país. Não todas, é verdade, mas Nossa Senhora se enquadra nessa categoria especial de virgens que são imagem e semelhança de sua gente.
Primeiramente é preciso ressaltar que Nossa Senhora é uma das interjeições mais utilizadas no português do Brasil. Para qualquer surpresa ou reação a um ato inesperado, Nossa Senhora é uma das expressões que sai das bocas brasileiras com mais frequência.
"Nossa Senhora, que homem mais lindo!"
"Nossa Senhora Aparecida, o que foi isso?"
Também é uma interjeição muito democrática e diversa, pois se adapta aos contextos sociais e geográficos de cada grupo dentro do Estado-Nação.
Um mineiro, por exemplo, diria em seu português tão gostosim algo assim:
"Nossinhora, oncotô?"
Que traduzindo do mineirês para o leigo, seria:
"Nossa Senhora, onde que eu estou?"
Provavelmente este mineirim acordou sabe Deus onde depois de uma noite com muita pincunmel (pinga com mel).
Um paulistano, tão apegado às coisas materiais, não hesitaria em colocar o pronome possessivo antes da expressão.
"Minha Nossa Senhora, você já viu o novo Iphone lançado neste fim de semana?" — Perguntaria ele em um tom eufórico,
"Claro, meu! Eu já comprei o meu na pré-venda. Chega semana que vem!" - Responde a colega do job com um ar de competição.
Às vezes me pego imaginando o que teriam dito ao encontrar a imagem da Santa no rio Paraíba do Sul, de difícil navegação. Imaginem comigo esta cena. Dois pescadores lutando contra esta corrente poderosa do rio paulista, e no lugar de um peixe pescam uma estátua de bronze.
"Minha Nossa Senhora!" - disse o que a encontrou primeiro.
"Minha, Nossa Senhora!" - teria contestado o seu companheiro.
"Minha preciosa!" - foi a fala final antes dos dois virarem protagonistas da nova saga do Senhor dos Anéis.
Estou tirando o sarro. Na verdade, o caipira (pessoa proveniente do interior de São Paulo) só se tornou apegado às coisas materiais depois que o ritmo sertanejo deixou de ser sobre os ciclos e mistérios da Terra e passou a ser um ritmo sobre dor de cotovelo e exaltação de caminhonetes 4x4.
Bom, seja esta história de pescador verdadeira ou não, uma coisa é fato. Os simbolismos por trás da imagem da Padroeira do Brasil perduram desde o século XVIII até os dias de hoje, e um dos motivos para tanto êxito é claramente os sincretismos, algo tão característico do brasileiro e tão ameaçado em um país com um projeto de cada vez mais 'monocultivo'.
Nossa Senhora Conceição de Aparecida foi encontrada em um rio e por sua tonalidade escura, logo foi associada à imagem de Oxum, orixá africana dos rios e das águas doces, reluzente como ouro em razão de seus trajes amarelos e dourados, igualmente encontrados nos detalhes bordados no manto da padroeira.
É preciso também lembrar que a estátua foi encontrada em um rio de terras brasileiras, que conserva seu nome tupi. Tal feito torna viável o seu sincretismo com Iara, a mãe das águas da maior nação indígena desta terra.
A sua pele negra, embora alguns historiadores defendam que é pura e simplesmente pela ação corrosiva da água, pelo considerável tempo que a estátua esteve submersa no rio, eu e minha alma de poeta custamos a aceitar tão explicação simplória. Preferimos os poetas e os líderes religiosos verdadeiramente cristãos que através dos mitos e das lendas mágicas defendem que Nossa Senhora é pretinha por adotar a aparência da parcela da população que mais sofre opressões e violências no país. Neste sentido, é óbvio pensar que Nossa Senhora teria, sim, a pele escura.
Já viram a virgem de Guadalupe, a padroeira do México? Ela tem a aparência indígena. Com este fato creio que minha teoria e dos poetas e religiosos que a fundamentam, é totalmente aceitável.
Nossa Senhora é motivo de peregrinação. Todos os anos a cidade de Aparecida, no interior de São Paulo, recebe cerca de 12 milhões pessoas (5 milhões durante a pandemia), no grande Santuário Nacional de Aparecida, que no que lhe concerne é o segundo maior templo cristão do mundo, atrás apenas da Basílica de São Pedro no Vaticano. Entre os visitantes estão católicos e não-católicos, brasileiros e estrangeiros, negros e não-negros, confirmando o seu grande poder de peregrinação, ecumenismo e diversidade de crenças e não-crenças.
Atravessando o tempo e o espaço, a estátua de Nossa Senhora segue no imaginário coletivo como um símbolo de aconchego, paz, proteção e acalanto para aqueles que dela necessitam. E eu acrescentaria que em um tempo de iconoclastias de cunho político, motivadas pela atual gestão do Governo Federal, em que os símbolos de pele escura são sempre os primeiros alvos, preservar e renascer a imagem de Nossa Senhora Aparecida nas mentes e corações dos brasileiros é um ato de resistência e união.
Foto Santuário Nacional de Aparecida, por Damáris Gonçalves