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Integrando 45% da população mundial, o bloco é antes de mais nada uma aglomeração de cosmovisões, modos de vida, costumes, hábitos, culinárias. A união destes exuberantes e viçosos ecossistemas, de gentes e culturas, traça uma nova rota de intercâmbios aromáticos, mais valiosa que qualquer dólar, euro ou iene; tem ela os perfumes de vida.
Educador, linguista, escritor, estudante de antropologia e mentor de jovens
Se concretiza a esperada expansão do BRICS, principal bloco econômico contra hegemônico do Sul Global. Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul dão boas-vindas a seis novos membros: Arábia Saudita, Argentina, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã, tornando-se então um grupo representante de um quarto do PIB mundial. Os números estratosféricos e imponentes apontam oportunidades reais de acordos bilaterais e multilaterais, no que concerne investimentos em áreas como saúde, educação, infraestrutura e bioeconomia, além de fortalecer a independência dos países membros frente à hegemonia dos Estados Unidos e dos demais países do G7; Reino Unido, Canadá, França, Alemanha, Itália e Japão. Entretanto, não é o valor monetário o ponto mais relevante do BRICS+6. Pelo menos não para nós, educadores, professores e fazedores de cultura.
Integrando 45% da população mundial, o bloco é antes de mais nada uma aglomeração de cosmovisões, modos de vida, costumes, hábitos, culinárias. A união destes exuberantes e viçosos ecossistemas, de gentes e culturas, traça uma nova rota de intercâmbios aromáticos, mais valiosa que qualquer dólar, euro ou iene. Ela exala os perfumes da vida.
Se falássemos apenas do Brasil, o país mais biodiverso do mundo, já teríamos um prato cheio de pura diversidade orgânica; a verdadeira riqueza da humanidade. Seus filhos Kamayurás, Araweté, Arara, Bororo, Baré, Baniwa, Guajajara, Kaiowá, Mbya, Kalapalo, Matis, Ñandeva, Surui Pater, Xokleng, Zo'é, Xavante, Tremenbé, Munduruku, todos esses filhos, ao longo de milhares de anos, cultivaram, conviveram, diversificaram e se transmutaram eles mesmos nas vicejantes paisagens onde nascem mangas, cajus, maracujás, sapotis, fruta-do-conde, jenipapo graviola, açaí, jaca, pitanga, amora, abacaxi, todas essas frutas. Em lugar algum, terra mais generosa não há.
Ainda assim, uma lamentosa soma de brasileiros segue sem compreender, assimilar e respeitar os solos sagrados onde pisa, feitos de saberes e histórias de um Brasil vestido de cocar. Estão, estes seres parasitários, nada mais que zumbizando pelas cidades e plantações imensas de monocultivos transgênicos. Paisagens mortas de uma nação saqueada pela persistente violência do pensamento e narrativa colonialistas.
Ousaria dizer que o Brasil, esta mãe gentil maltratada pela pátria, é a mátria mais rica do mundo, ainda que, no final, riqueza é um conceito subjetivo, e tal enunciado arriscaria ser interpretado como competição delimitada por fronteiras imaginárias. Além disso, muitos desses filhos ingratos parecem se alimentar de lítio, cobre, ouro, prata, nióbio, ferro, chumbo, estanho, petróleo e não mais das plantas que lhe servem de energia. Seriam estes filhos máquina? Ainda assim, resisto, pois me sei banhado pelos mares, rios e florestas encantadas de minha mãe. Ainda assim, sei ser ela, a nossa mãe natureza, aqui e também na Europa, África, Ásia, Américas, Oceania e Polos Ártico e Antártico, um organismo vivo, interconectado, clamando, aos seus filhos tardios, ser novamente reconhecida. Aqui, sabendo-nos parte de algo maior, privilegiados de sermos um grão de areia, deixemos a competição insensata, originada no modus operandi capitalista, apenas para o futebol.
Além do amor pela competição sã do futebol, outra característica bela do brasileiro é sermos bem quistos por onde passamos. Italianos, japoneses e alemães são peças fundamentais e inseparáveis de nossa invenção como povo. São formadores da composição genética e cultural da nossa identidade plurinacional. Franceses, ingleses, estadunidenses, canadenses, por sua vez e sem exceção, são povos com os quais mantemos relações de amizade e respeito, em que não esperamos nada mais que reciprocidade. Deles, por eles e com eles temos praticado, ao longo de séculos, antropofagias apetecíveis. Não deixamos nunca, contudo, de ser exímios antropófagos; desejosos de alimentarmos da pulsão bravia de outros guerreiros, outros sábios, desejosos de aformosear e engrandecer a amálgama que nos compõe. Somos bons em criar heterônimos muitos, cada vez mais muitos, que nos possibilita a invenção de infinitas pessoas. Somos filhos dessa mãe primeira, mãe verdadeira. Aquela que não nasceu da costela de nenhum Adão. Nossa mãe é a própria macacarecuia, jacarandá, sapopemba, babaçu, buriti, cambará, cambuci, cambuí, canela, canelão, caúna, cedro, abacateiro, embira, embirinha, embira-branca, embireira, embira-de-sapo, ingá, sapuva, sapucaia, quina, pitombeira, samaúma, todas essas mães, banhadas por xingus, juruás, parnaíbas, tapajós, tietês, guaporés, iguaçus, paranás, juruenas, tocantins, iriris, tarunãs, buritis, mauás, piratinis, ibirapuitãs, ipirangas, todos esses elixires. Vamos renascendo, pouco a pouco, desde essas raízes milenares, vibrantes e vivazes. Aqueles, ainda adormecidos, hão de se reconhecer, enfim, como seres feitos de sangue de índio; nas veias ou nos corações. Enquanto aqueles que insistem em ter sangue nas mãos, não são filhos de nossa mesma mãe não.
Afortunados nós, que já bailamos o jazz, o boogie e o rock'n'roll. Que vibramos com os potentes discursos de Luther King, Davis e Malcolm X, apaziguados depois com os poemas musicados de Tupac. Afortunados nós, que lotamos os shows dos Beatles, para ouvir canções fáceis falando de amor e amizade. Afortunados nós, que celebramos a vida compartilhando uma pizza de muzarela com peperoni, acompanhada de notas frutadas de um cabernet sauvignon. Encantamo-nos com a escrita brilhante e universal de Shakespeare, para logo adentramos o inconsciente da sociedade britânica através da mente analítica de Woolf. Tivemos a possibilidade de reconhecermo-nos singulares com Rousseau, diversos com Boas, subjetivos com Nietzsche e Freud, revolucionários com Marx, geniais com Einstein, heroicos com Turing, responsáveis com Sartre e maduramente equilibrados com Adorno. Aprendemos ainda, com nossos primos do norte, que aos povos nativos se deve um pedido de perdão oficial, pronunciado docemente como o mel de ácer, abrindo os caminhos para uma reparação verdadeira. Afortunados todos nós, que há mais de um século, desde a primeira sessão dos irmãos Lumière, lotamos salas para ver projetada a imitação da vida, desenhada pelas mãos habilidosas e capacidade imaginativa de Miyazaki e Kurosawa.
Que abundante é a experiência de vida de um antropófago nativo-brasileiro, sempre querendo mais, aprendendo mais, vivendo mais, ampliando-se mais. Dispostos a viajar desde o fundo do mato virgem até a pauliceia desvairada, descobrindo, explorando e reinventando novos ecossistemas.
Queremos seguir rompendo muros, cruzando fronteiras, viajar sem lenço nem documento, sem impedimentos e sem restrições. Peregrinar à Meca, pois somos, nós também, filhas e filhos de Alá. Caravanear o Saara, conferindo de pertinho a magnânima imponência das Pirâmides de Giza e o turbante do Faraó, para voltar e ressaltar o realce de nossos terreiros e das coroas dos reis e rainhas do Ilê Aiyê. Caminhar sobre as nuvens nos 828 metros da engenharia-mágica do Burj Khalifa, observando desde o céu o brotar das águas que inundam os desertos das arábias. Aprender russo para ler Dostoiévski no seu original, sendo enfim capazes de notar o tola e sem sentido que pode chegar a ser a sociedade. Meditar em Confucio, Rasputin, Buda, Rumi, Maomé, todos esses profetas, que nos revelam que a experiência terrena é nada mais que uma escola para o plano astral. Mas que delícia é vivê-la! Queremos ascender bailando e recitando poemas sufistas. Ouvir atentamente mestres hindus e indígenas, em coro, ensinando aos ignorantes que 'índio' não existe, ainda que índios somos. Caminhar lado a lado com Gandhi e Mandela em direção à revolucionária e pacífica batalha pela liberdade; nosso hino será proferido por Mama África Makeba. É nosso direito básico e fundamental poder voltar ao princípio, aprender a origem do tudo e do nada, com os nômades afar, desde o nosso berço etíope, onde ousamos dar os primeiros passos tímidos nessa jornada sem direção. Dela só nos restou o aroma do cafezinho diário, nos chamando ao regresso. Regressar ao casulo do ventre de toda a humanidade, que provou nem mesmo o poderio militar ser suficiente para controlar a vida. Exigimos acesso a tudo. Todo o conhecimento, toda a beleza imaginada, pensada e concretizada. Exigimos acesso aos mapas e manuais queimados junto a Biblioteca de Alexandria. Exigimos tudo por inteiro, nada pela metade.
Mas depois de tanto cansaço, de tanta viagem, de tanta procura, voltaremos à casa. Nos sentaremos em uma mesa de bar, abraçados com nossos hermanos e suas cores de calmaria de Oxalá, para discutir sobre o amor, a política, as dores e as delícias de sermos sul-americanos. Tomaremos litrões de cerveja, defenderemos com unhas e dentes que Pelé foi melhor que Maradona. Assim como Maradona foi melhor que Pelé. Brindaremos a revolução tardia com uma taça de vinho argentino. E com outra taça mais de vinho chileno. Lembraremos de Guevara, de Marighella, e tantos dos que caíram no caminho, honrando suas memórias, expressando a alegria e o regojizo que nunca deixamos de sentir pela utopia escondida atrás das grades das ditaduras. Sairemos para dançar salsa, samba, tango, cúmbia, merengue, reggaeton, funk, forró, caporal, lambada, carimbó, calipso, rock'n'roll, bachata, vallenato, carranga, polca, sertanejo, maculelê, capoeira, todos esses bailes, oferecendo uma cachaça de jambu para os santos. Alçaremos no topo do Obelisco e nas mãos estendidas do Cristo Redentor, a bandeira de Wiphala, coloridas como nossas montanhas, frutas, gentes e suas diversas maneiras de ser e de gostar. Carnavalizaremos novamente a alegria de sermos e vivermos no continente em plena formação. Faremos um brinde mais, este de chicha de sete milhos, ouvindo Sosa e Gal interpretando Parra, nos lembrando a sensação de ter dezessete, em uma celebração com nossos irmãos próximos; brindaremos primeiro entre nós, sudacas, que há muito temos este canto sufocado no peito. Mas logo de germinar, semente que somos, abriremos as portas para quem mais quiser entrar. Estão todos convidados. Não se esqueçam, contudo, de tirar os sapatos e pedir licença.
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